sexta-feira, 20 de março de 2009

Sobre a Lenda de Honório (parte 1)

"Quanto mais alto o homem,
de mais coisas tem que se privar.
No píncaro não há lugar senão para o homem só.
Quanto mais perfeito, mais completo,
e quanto mais completo, menos outrem."

Do "Livro do Desassossego"
por Bernardo Soares/Fernando Pessoa
Volume I, pág.101


Muitos foram os veneráveis padres que passaram pelo Conventinho de Sintra, ali deixando indelével marca, ora por algo que fizeram, ora por lendas e tradições locais que evocam os seus nomes e exemplos de vida.

De entre todos, Frei Honório de Santa Maria será o mais célebre, talvez a par de Frei Agostinho da Cruz (embora este pelo que escreveu e viveu no Convento da Arrábida) e de Frei Pedro de Antoria, franciscano espanhol do Reino de Jaen e proveniente da Recoleta Casa de Abrojo e que foi um dos primeiros "arrábidos" da Província, bem como o primeiro guardião do Convento de Sintra.

Honório viveu uma longa e rica vida, que já aflorámos aqui no Blog, e a sua lenda eternizou-se (cumprindo a função que lhe é própria) na boca e nos escritos de gentes locais ou de fora, embora com várias cambiantes, que tornam a sua vida - tal como é conhecida pelos estudiosos ou visitantes do Convento - ainda mais rica e interessante.

A mais conhecida lenda relativa à vida de Honório teve no livro "Cintra Pinturesca", do Visconde de Juromenha, o seu mais eficaz divulgador. A lenda tem sido contada ao longo dos anos de formas diferentes, mantendo-se no essencial o âmago da história, que está assim resumida na página web da CM de Sintra:

"Diz-se que certa vez, Frei Honório encontrou pelos campos uma linda rapariga, "para quem não olhou", mas que o forçou a fazer algo. Exigia-lhe que a confessasse. O virtuoso monge, naquele ermo não tinha confessionário, e sem querer fixar a pequena, mandou-a para o convento em procura de outro confessor. A bela de moçoila não se conformou com a resposta e insistiu ao mesmo tempo com o bom religioso. Rubro como um tomate, a suar em bico - isto passou-se em Agosto - apressou o passo, sempre seguido daquela que lhe pedia a absolvição ou penitência, até que, voltando-se e tapando o rosto com uma das mãos para fugir à formosura que o diabo encarnara para o tentar e perder, com a outra fez o sinal da cruz, a que a endiabrada e tentadora, respondeu com um grito, fugindo para não mais ser vista. Então, Frei Honório, por castigo por ter caído em tentação, isolou-se a pão e água numa gruta existente no Convento. E lá ficou até ao fim da sua vida".

A obra "Espelho de Penitentes e Chronica da Provincia de Santa Maria da Arrabida", da autoria de Frei António da Piedade (Lisboa, 1728), dedica a Honório dois capítulos, o primeiro sobre a sua vida e o segundo dedicado a episódios particulares dos seus triunfos sobre o demónio.

Este segunda capítulo, que é o XLI da Parte I, Livro IV, inclui quatro breves narrativas, que aqui procurarei resumir, nos seus traços essenciais.

I.

Conta a Crónica da Arrábida que foi certo dia de Jubileu, quando Honório se dirigia para o Confessionário do Convento onde já o esperava muita gente das Vilas de Sintra e Colares, deparou-se com a figura de um homem humilde, que ajoelhado lhe pediu a confissão "que a queria fazer geral das suas culpas". Honório anuiu, sem saber o que o esperava, e a confissão - que julgava breve, de forma a poder ouvir todos quantos esperavam - prolongou-se por três dias seguidos, com o Padre a suster "com paciencia a molestia, por entender fazia a Deos hum grande serviço". As culpas eram enormes, e a confissão prometia demorar-se ainda muito, pelo que Honório assim se dirigiu ao homem: "Jesus me valha! Haveis de acabar de vos confessar alguma hora?". E ao pronunciar as transcritas palavras "desappareceo o penitente, deixando hum abominavel cheiro no confessionario". Era pois o demonio, que usando a máscara de homem simples procurava "estorvar os muitos Sacramentos, que houvera de ter administrado aquelles dias".

II.

A mesma Crónica narra o episódio de uma visita que no Convento lhe fez uma mulher de Cascais, que ali vinha fazer confissão, para assim iniciar um novo rumo para a sua vida "depravada". O porteiro do Convento deu o recado a Honório, mas vindo ao encontro da dita mulher, encontrou primeiro um moço, que confessou sem saber que o seu único objectivo era afastá-lo da confissão da visitante de Cascais... Prolongou-se a confissão por quatro horas, e mais teriam sido, não tivesse Honório dito: "Filho, ou tu es o diabo, ou o trazes contigo". O moço respondeu-lhe "He verdade, que eu sou o diabo, e a boa pessa lhe tenho feito", e desapareceu. Confuso, Honório procurou a penitente de Cascais, mas lhe disseram que já se havia ido. O frade de Sintra entendeu por bem procurar a mulher, por forma a não deixar triunfar o diabo, e para "a livrar das garras do infernal lobo". Com a permissão do Prelado, percorreu a Serra e foi encontrá-la já no pé da mesma. Ali mesmo a confessou, e a "animou à perseverança do proposito", partindo depois de regresso ao Convento.

(continua...)

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