terça-feira, 24 de março de 2009

O Convento por Soror Violante do Céu (1601-1693)

Sem notas nem extensa introdução, aqui deixo em jeito de partilha - a verdadeira vocação deste Blog dedicado ao Conventinho - uma bonita "canção" de Soror Violante do Céu (1601-1693), freira dominicana que escreveu sobre a Casa franciscana da Santa Cruz de Sintra, a propósito de um "corisco" que na Cerca partiu uma Cruz, sem fazer vítimas entre a comunidade de religiosos arrábidos.

Porque este singular e belíssimo poema fala por si, aqui fica a transcrição:

"Si minha penna fôra
Das azas de algum Anjo produzida,
Tanto vôara agora,
Que da Arvore que o foi da melhor vida,
Applaudira o valor com canto excelso,
Como anhela a razão, pede o sucesso.

Mas supposto que seja
Indigna minha penna de tal gloria,
Quero que o Mundo vêja
A nova Redempção, nova victoria,
Que obrou, que conseguio a Cruz divina
Na Casa singular, que patrocina.

Naquella altiva Serera,
Que em Cintra desafia o Firmamento,
Hum breve Ceo na Terra
Ostenta a Santidade de hum Convento,
Tão raro na virtude, e Santidade,
Como raro tambem na brevidade.

He o titulo delle
Sancta Cruz, porque á Cruz he dedicado,
Que assiste sempre nelle
Pois no mesmo Sacrario collocado
Tem aquelle ditoso, e Sancto Lenho,
Que foi das nossas almas desempenho.

Na breve cerca deste
Epilogo de excessos portentosos,
Quiz o pendão celeste
Obrar tambem excessos amorosos
Pois da balla terrivel de hum corisco
Quiz que fosse só seu o alheio risco.

Porque dando temores
A todo o claro globo huma tormenta,
Que em raios, e esplendores,
Falsificou cruel a alma violenta,
Abortou o vapor que congelado
Ficou em pedra dura transformado.

Não dirigio o tiro
A' soberba da Serra levantada,
Senão ao bom retiro
De hum logar que na cerca limitada,
Serve, por solitario, de deserto,
Aos que vam contemplar no amor mais certo.

E sendo frequentado
De hum, e outro Capucho venturoso,
Logar tão retirado
Principio do Successo milagroso,
Foi não estar nenhum naquella hora
Aonde cada qual contempla, e ora.

Com barbara ousadia
Ao pé da Arvore excelsa cahio logo
A pedra, que trazia
Contra toda a defensa armas de fogo
Mas oppondo-se a tudo a Cruz divina
Tomou sobre si só toda a ruina.

Porque quebrando a furia
A pedra do Corisco na, que tinha
A Cruz, lhe fez injuria
De a partir, sendo de outras trão visinha,
Que de inveja podera desfaz-las
Por serem pedraria das estrellas.

Porém como invejosa
Só da Pedra, que tinha a Cruz sagrada
Por ser mais preciosa
Por estar á Cruz santa mais chegada,
Com tal furia a quebrou que fez pedaços
A quem o mesmo Deos teve em seus braços.

Mas, ficando corrida
De atrevimento tal, tal desacato
A pedra já partida
Escondeo entre outras com recato,
Mostrando envergonhar-se do defeito,
De não guardar á Cruz todo o respeito.

Porém todo guardara
Si quem nella morreo não permittira,
Com piedade rara
Que objecto fosse a Cruz de tanta ira,
Porque nenhuma vida perigasse
E a soberna Cruz mais o imitasse.

Porque como Deos nella
Nossos culpas livrou, nossos tormentos,
Quiz tambem que a Cruz bella
Tomasse sobre si riscos violentos,
Porque se visse bem que na Cruz Santa
Semilhança influio união tanta.

Porém a semilhança,
Que eu acho nesta acção tão parecida,
He que a humana ofensa
Pagou Christo, e a Cruz exclarescida,
Por Justos, como já por Peccadores
Fineza ostentou, soffreo rigores.

Oh bemaventurados
Os que adquirir souberam tal fineza
Vivendo retirados
Em tal imitação, em tal pobreza
Que do simples por breve potentoso
He hum penedo só tecto famoso.

Ditosos os que habitam
Em tão doce prisão, tal soledade,
ois viver solicitam
Na largueza maior da Eternidade,
E ditoso tambem o Heroe illustre
Que em tal casa fundou da Terra o lustre.

Oh! multiplique glorias
A seu ditoso Espirito a Cruz Santa
Por quem levou victorias
Que a Fama solemnisa a Terra canta
Com as quaes imprimio nos mesmos Astros,
O tymbre dos Noronhas, e Castros.

E vós Capuchos Santos
Que com tanta Oração, tal penitencia
Ganhaes favores tantos
Alcançai-me da Eterna Providencia
Favor para que louve a Cruz divina,
Que a tão firmes bonanças vos destina.

Pedi ao Rey piedoso
Que servis nesse breve Paraiso
Que de seu Sol glorioso
Hum atamo conceda ao meu juizo
Porque accerte a louvar a Cruz ditosa
Das almas doce Mâi, de Deos Esposa.

Pedi-lhe que suspenda
Os castigos que tenho merecido,
E que a Cruz me defenda
Do risco, que, por grande, he tão temido,
Pois he certo se falta a Soberana
Que contra o Ceo não val defesa humana."

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